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Quando as pessoas se esfacelam…

No processo de abandonar os refrigerantes e adotar os sucos, procurei por uma jarra. Em nossa casa não tínhamos nada que servisse. Na prateleira da…

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No processo de abandonar os refrigerantes e adotar os sucos, procurei por uma jarra. Em nossa casa não tínhamos nada que servisse. Na prateleira da loja  avistei uma, brilhante, de cristal, gargalo longo, forma perfeita para caber na porta da geladeira. Lisa, fácil de limpar, bonita em sua simplicidade. No cartaz, um alerta: exclusividade, peça única. Tenho apego a alguns objetos – às vezes, mesmo sem utilidade, não os jogo fora, e outros passo a tratá-los como se fossem relíquia sem nenhuma explicação. Assim foi com esta jarra.

Cabe dizer que não bastam suas qualidades e utilidades para alçar estes pequenos objetos ao patamar de insubstituíveis, há também o incentivo do desejo e elogios alheios para que as tornem peças raras.  Outras vezes há a consideração por quem presenteou ou respeito pela marca ou pelo artista que criou.

Há alguns anos, depois de tantas entrevistas e candidatas, escolhemos a Edileusa para trabalhar em casa. Morena pequena, sorridente, dedicada e caprichosa. Escolhida assim, como a jarra de cristal, com cuidado pelas suas características e habilidades. Edileusa foi alguém a quem fomos criando apego. Aos poucos naturalmente vai desaparecendo aquela relação patrão-empregado e vai se tornando parte da casa, da rotina e das nossas vidas.

Ela deve ter sentido a mesma coisa. Olhou para aquele casal simpático, intuiu o volume de trabalho considerando o número de cômodos, calculou as horas de viagem para se chegar lá, negociou, e assim começou a relação. Pouco a pouco foi encontrando facilidades e mordomias inimagináveis antes de se conhecer a rotina e os patrões. O tempo passou e ela ganhou respeito, elogios e nossa confiança… Com isso, um apego por nós também brotou nela.

Misteriosamente, há algum tempo Edileusa andava distante e desinteressada. Numa sexta-feira um copo sendo lavado sob a torneira escapou de suas mãos habilidosas e espatifou a jarra, justamente a jarra que eu tinha tanto apreço e que esperava ser lavada em seguida. Num segundo aqueles cacos que unidos eram a jarra, separados não eram mais nada. Ao retirar os estilhaços da pia, pedaço a pedaço, era possível identificar o que era o gargalo, a alça… Entretanto, aqueles pedaços já não eram mais o que me foi um dia tão digno de apego.


Foto: Naszemiasto

Edileusa, para mim, também se partiu em cacos. Pela sua distância, não era mais aquela que tanto admirávamos e que era parte do todo que era nossa casa. Deixou de ser a pessoa que fazia deliciosos pudins, assados e um feijão perfumado com folhas de louro e carne seca. Ela, apesar de inteira, agora parecia partida. Ainda me lembro do primeiro dia em que a vi na entrevista, ainda pareço ouvir dela o detalhamento de sua experiência, mas não era mais a mesma pessoa, não era inteira. Era apenas um pedaço de alguém de quem eu mantinha breve recordação.

Aos poucos, dia após dia, sem que eu soubesse exatamente o quê ou porquê, Edileusa se atrasava, faltava sem motivo. Já não tinha o mesmo capricho, não era mais interessada na saúde da casa. Assim, ela foi se partindo em cacos. Reconhecia cada “pedaço” dela: aquela que montava com precisão a lista de compras, que servia como negociadora para as brigas do casal, que se aventurava a fazer pequenos consertos… Tudo aquilo, sei muito bem, foram meus critérios de escolha. Agora eram “cacos” e, olhando para ela, estes pedaços não eram mais uma pessoa, não era mais a nossa Edileusa. Assim como estilhaços de uma jarra não é mais uma jarra.

Eu mesmo, muito antes do cristal ou dela, talvez me encontrasse partido. Dividido pelas minhas questões, já não me encontrava inteiro. Isso contava muito, porque para ela a paga já não era suficiente. Eu, desatencioso, não me dava conta de que não era o salário a única recompensa pelo trabalho. Eu mesmo, como um caco, não reconhecia seus acertos, não a parabenizava por uma solução ou pela iniciativa não prevista no acordo das tarefas.

Ela devia me olhar e procurar naquele chão em que eu me espalhava como se estivesse em pedaços – talvez quisesse remontar aquele que antes fora alguém educado que cumprimentava com alegria, criticava com sutileza uma coisa qualquer fora do lugar. Ela revia, ainda que não conseguisse pensar desta forma, o que a havia atraído até ali. O que a tinha feito decidir por escolher entre aquela e outra casa qualquer e já não encontrava a resposta. Neste momento a ela, só lhe restava mesmo a paga.

– E agora “Seu” Vinícius, como se une tantos pedaços? – ela me pergunta.

– Não se une Edileusa. Pessoas e objetos mudam. Um quadro ou uma porcelana pode vir a valer mais, depende do reconhecimento do artista.

– Mas a maioria não vale nada. Quantos foram as peças ultrapassadas, fora de moda que doamos ou jogamos fora?

Falávamos de nós mesmos, não de porcelanas ou quadros. Algumas pessoas descobrem seu valor, enquanto outras… partem como jarras. O detergente fazendo um excedente de espuma na esponja vai escorrendo por seus dedos, o fio de água enche o copo e aumenta seu peso, com pouco atrito, basta um vacilo e ele cai. Não é uma queda qualquer, cai propositalmente sobre AQUELE cristal. A queda sobre um prato comum não teria o mesmo efeito. Só a quebra daquela peça para me atentar que ela não queria se afastar da nossa casa, mas convocava minha atenção para meus devaneios.

Com a jarra não é possível mais unir todos os pedaços, mas com pessoas isso acontece. Pessoas divididas e mil fantasias voltam a si com um providencial acidente, assim como este, fazendo parar e perguntar “por quê? Porque justamente esta peça?”. O resultado disso tudo é que voltei minha atenção para seu trabalho e ela voltou a ser aquela pessoa tão querida e dedicada. Edileusa não foi trabalhar em outra casa, continua conosco. Eu nunca soube se houve mesmo uma proposta de trabalho melhor do que a que oferecíamos a ela. Pensando melhor, isso é o que menos importa.

Por Vinicius Moura

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Foto de abertura: Billed Guiden

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