Moda e Tribos Urbanas
Por Queila Ferraz Monteiro “Nas grandes cidades surgem os emos, jovens que aliam som pesado à sexualidade flexível.” Os movimentos de cultura de moda, que…
Por Queila Ferraz Monteiro
“Nas grandes cidades surgem os emos, jovens que aliam som pesado à sexualidade flexível.”
Os movimentos de cultura de moda, que envolvem o vestuário dos adolescentes nas cidades contemporâneas, têm sido identificados como movimentos que se reconhecem como Tribos Urbanas.
Para compreender melhor a extensão da expressão que nomeia tais movimentos, construí um suporte teórico, que derivou da leitura de três pensadores do século XX e, partindo daí, acabei delegando a tal conceito a condição de serem as tribos comunidades de sobrevivência afetiva nas culturas urbanas das grandes cidades contemporâneas. Os autores e as obras são as do francês Michel Maffesoli, O Tempo das Tribos e também A Contemplação do Mundo, a do norte-americano David Riesman, A Multidão Solitária, e as do alemão Norbet Elias, A Sociedade dos Indivíduos e O Processo Civilizador.
É importante compreender as tribos como “comunidades de sobrevivência afetiva” (Elias-1996) dentro da vida urbana. Cada uma destas tribos se estetiza através de seu vestuário e se organiza em torno de um líder espiritual distante, um ídolo musical ou esportivo que, reúne projetos momentâneos e anseios de curto prazo dos membros da tribo.
Para que tal fato ocorra, eles prescindem das relações familiares e raramente projetam em seus pares qualquer expectativa de projeto profissional ou garantia de sobrevivência material.
Norbet Elias, em A Sociedade dos Indivíduos, considera que as Tribos Urbanas são grupos de iguais que se organizam em comunidades para garantir sua sobrevivência afetiva durante a passagem para a vida adulta, dentro das sociedades contemporâneas urbanizadas, em que o elevado valor da sobrevivência, na convivência dos indivíduos, marca o rumo da estrutura do homem singular na história da humanidade.
Outro exemplo de tribo urbana – os Punks.
Este sintoma é vital e, segundo o autor, a evolução das relações do indivíduo com o grupo social transforma sua estrutura de personalidade e suas relações com os demais, pois cada indivíduo, sendo diferente de todos os outros membros do grupo, apresenta um caráter específico, que partilha com os outros membros da sociedade.
Tal partilha, quando se estabelece na vida da cidade, está sendo reconhecida como o fenômeno das Tribos Urbanas, em que o vestuário tem servido de elemento definidor de individualidades, que buscam seus iguais; isto porque, para Elias, uma das particularidades estruturais destas sociedades é a freqüência das relações não permanentes ou potencialmente alteráveis, que delegam aos parceiros a tarefa de a modelar, onde as comunidades de sobrevivência têm a função de proteger o indivíduo e garantir sua segurança física e social em caso de conflito entre os “bandos”.
Elias afirma que (1996:142)
A forma em grupo, as formas particulares de comunicação e a cooperação que se desenvolveram na história da humanidade constituíram a forma básica para o êxito na luta pela sobrevivência dos seres que eram mais fracos na musculatura e na velocidade que a fera a ser caçada, sendo que o sintoma da estrutura orgânica do indivíduo que aponta para a inserção que a liga ao grupo, é a disposição biológica de todas as crianças para aprender o tipo de comunicação que a liga ao grupo e não à espécie.
O sentimento de grupo se desenvolve sempre na experiência de ameaça de extinção de um grupo por outro, sendo este o motivo que torna fundamental o reconhecimento dos sentimentos de sobrevivência para qualquer estudo de comportamento grupal.
“A tribo dos Góticos – paixão pelo mundo das trevas.”
Para Elias (1996), a mudança das relações sociais não modificou a necessidade de contato e relação afetiva entre os indivíduos, já que a carga afetiva das relações é o fator determinante da mudança nas relações sociais, e visto que as Tribos Urbanas agem como comunidades de sobrevivência auto-reguladoras e protetoras afetivas e, mesmo quando carregam grande dose de rebeldia, elas são o próprio impulso para a evolução social.
Para Mefessoli (1995), existem momentos da trajetória da humanidade nos quais se vive um social racionalizado, em que a história propõe um fim a ser realizado e existem outros, em que este social é substituído por uma socialidade com dominante empática, comandada pelo perder-se em um sujeito coletivo: “o estar junto à toa”.
A socialidade com dominante empática se exprime numa sucessão de ambiências, de sentimentos e de emoções. Condição que Maffesoli chama de Neotribalismo, pois para ele (1987:16):
Inúmeros exemplos da nossa vida cotidiana podem ilustrar a ambiência emocional que emana do desenvolvimento tribal,…podemos notar que esses exemplos já não espantam mais, já fazem parte da paisagem urbana. As diversas aparências “punk”,”kiki”,”paninari” que exprimem muito bem a uniformidade e a conformidade dos grupos, são como outras tantas pontuações do espetáculo permanente que as megalópoles contemporâneas oferecem.
As reflexões de Maffesoli estão voltadas para a multiplicidade do eu e a ambiência comunitária que essa multiplicidade produz, chamada pelo autor de paradigma estético, no sentido que permite vivenciar e sentir, em comum, através do corpo que se “pavoneia” e que se manifesta através da idéia de persona, de máscara, que pode ser mutável e que se integra numa variedade de cenas e de situações, que só valem porque são representadas em conjunto.
A persona só existe na relação com o outro, em que a ênfase incide mais sobre o que une do que sobre o que separa. A ênfase está mais no mito de que se participa do que na história que se constrói. E este autor lembra que (1996:163)
A manifestação privilegiada da estética: de experimentar junto emoções, participar do mesmo ambiente, comungar dos mesmos valores, perder-se, enfim, numa teatralidade geral, permitindo, assim, a todos esses elementos, que fazem a superfície das coisas e das pessoas, fazer sentido.
Solidamente sustentado no conceito de comunidade emocional de Max Weber e no estudo da natureza dos sentimentos, proposto por Durkheim, o autor fala da elaboração das crenças comuns e da procura de companhia daqueles que pensam e sentem como nós.
” Os surfistas também constituem outra tribo.”
Para Maffesoli, esta é a matriz a partir do qual se cristalizam todas as representações em que a elaboração e a divulgação das opiniões devem muito ao mecanismo de contágio do sentimento, ou das emoções vividas em comum, projetadas em figuras míticas que permitem manifestar uma estética que serve de receptáculo à expressão do nós, com a emergência de um forte sentimento coletivo.
Esta socialidade tem assegurado uma forma de solidariedade e de continuidade através das histórias humanas. Maffesoli chama este fenômeno de Comunidade de Destino. David Riesman, (1995) sociólogo norte- americano, pioneiro nos estudos da condição do jovem adolescente nas sociedades do século XX, já na década de 1960, apontava para a existência deste tipo de socialidade no mundo contemporâneo e classifica os grupos que convivem desta forma como grupos de iguais.
E é assim que pensamos poder ser possível abordar as modas das tribos urbanas como a moda dos grupos de iguais, ou seja, moda de iguais tribalizados. Iguais porque pensam e sentem uns como os outros, dentro de uma ambiência que os torna solidários.
A metáfora da emoção coletiva tem uma função de conhecimento que nos introduz no cerne da organicidade característica das cidades contemporâneas, analisando as tribos urbanas de Maffesoli como neotribalismo e as comunidades de destino de Riesman como grupos de iguais, considerando que são desdobramentos de uma condição social maior, que ultrapassa os limites do grupo e que têm uma condição histórica, que justifica o seu aparecimento dentro da história do ocidente.
A obra deste autor é citação clássica dentre os estudos de adolescentes norte-americanos e deste sujeito como produto da cultura urbana do século XX. Através da análise do indivíduo alterdirigido, Riesman (1995) contribui para a compreensão da formação de grupos de iguais, como o fenômeno que nos permite o resgate histórico do que hoje chamamos de Tribos Urbanas na cultura ocidental.
Para tratar da formação de grupos sociais através da história, ele se valeu do conceito de caráter social como produto da experiência destes grupos, capaz de gerar os modos de configuração com os quais seus participantes abordam o mundo e as pessoas, assegurando, assim, um grau de conformidade por parte dos indivíduos que compõem seu meio social.
Já em 1961, Riesman afirmava que (1995:69):
Para que qualquer sociedade possa funcionar bem, seus membros devem adquirir o tipo de caráter que faz com que eles queiram agir da forma como têm de agir. Eles têm de desejar o que obviamente é necessário que façam. A força externa é substituída pela compulsão interna e pelo tipo de energia humana que é canalizada para os traços de caráter.
Este autor trabalha com os conceitos de caráter social dos tipos traditivo–dirigido, introdirigido e alterdirigido.
Alterdirigido é o tipo de caráter que tem aflorado na classe média das nossas maiores cidades e tem afetado um número crescente de indivíduos nos centros metropolitanos dos países industrialmente avançados. Este caráter surge quando pessoas idosas, improdutivas, e um contingente de jovens destreinados constituem uma elevada proporção da população. Produzem uma sociedade centralizada e burocratizada, em que a vida é agitada pelo contato de raças, nações e culturas.
Nestas sociedades, as pessoas têm abundância material e tempo livre para lazer a ser consumido dentro dos centros urbanos, diariamente.
À medida que as pessoas se misturam e se tornam mais sensíveis umas às outras, passam a ser o ponto de referência entre si. Riesman afirma que o que há de comum entre todas as pessoas alterdirigidas é que a fonte de orientação para o seu comportamento está nos seus pares, isto é, nos seus iguais (1995:72)
…o alterdirigido é mais superficial, mais liberal com o seu dinheiro, mais amistoso, mais seguro de si e de seus valores e, sobretudo, mais carente da aprovação do grupo. Esta fonte é internalizada desde cedo no indivíduo e as metas rumo às quais a pessoa alterdirigida se empenha, são mutáveis. Ela aprende a reagir a sinais de um círculo muito mais amplo do que o constituído por seus pais. A família não é mais uma unidade estreitamente ligada à qual pertence. Vive em um meio grupal, porém falta-lhe a capacidade de arranjar-se sozinho.
O indivíduo alterdirigido é cosmopolita e capaz de ter com os seus pares uma intimidade rápida, mesmo que superficial. Esta forma de manter-se em contato com os outros, permite estreita conformidade de comportamento, que se dá através de uma sensibilidade excepcional para com as ações e desejos dos outros, sendo esta fonte de orientação a área primordial da sua sensibilidade, que se assemelha a um radar.
Aqui reside a principal diferença na abordagem sobre as tribos urbanas de Maffesoli e Riesman: para o primeiro, as tribos são a expressão de uma convivialidade festiva e vivem à sombra de Dioniso, para o segundo, as tribos (ou, como ele chama, dos peer-groups ou grupo cômpar) são o espaço da ditadura dos grupos de iguais, em que o fenômeno da multidão solitária mostra o indivíduo que busca, na tribo, uma fuga impossível do tédio.
Este é o sujeito que habita as comunidades tribalizadas contemporâneas. Para ele os outros tanto podem ser um círculo superior da sociedade, um círculo de iguais, com quem ele pode compartilhar seu tempo de passagem pela adolescência como as vozes anônimas dos meios de comunicação e seu sistema de imagens.
Porém a moda, enquanto empreendimento coletivo e, simultaneamente, individualista, é um meio de expressão em larga escala da solidariedade e da identidade de grupos de iguais. Para compreendê-la dentro de seu universo contemporâneo, temos que nos debruçar sobre o traje como universo de socialização, que virtualiza, também a alienação, o desvio, a revolta e, portanto, sobre os estilos de oposição, que hoje estão visíveis nas modas comportamentais.
Para Wilson (1989), os dissidentes sociais e políticos criaram formas especiais de vestir para exprimirem a sua revolta durante o período napoleônico e da Revolução Industrial. Hoje em dia, os rebeldes sociais transformaram a utilização da moda numa afirmação vanguardista, atribuindo a ela, além da qualidade unificadora de imagens sociais e políticas, também a de libertadora dos padrões de elegância e comportamento aceitos como corretos.
Desde o século XVIII, a revolta social vem se agarrando ao comportamento e à identidade sexual expressos no vestuário como um veículo adequado. Anteriormente era o sinal direto do nacionalismo ou da revolta política. No século XIX, o vestuário passou a significar também, tanto a dissidência do grupo como a dissidência individual, especialmente no caso dos homens.
A figura crucial nesta transformação foi o dândi, impondo-se contra os exageros de rendas e brocados, pós-de-arroz e pintura do estilo rococó e proibindo o uso de perfume. Arquétipo do novo homem urbano, que vinha não se sabe de onde, para quem a aparência era uma realidade; a imagem como expressão narcisista de novidade. Modificou o tipo de beleza masculina apreciada na época, retornando a um chique clássico, ou melhor, neoclássico. O novo estilo substituiu as sedas da velha aristocracia por tecidos de lã.
Politicamente, era o resultado das lutas revolucionárias dos finais do século XVIII, que abalaram valores tão sólidos, como a riqueza e o nascimento, permitindo que coisas efêmeras, como o estilo e a pose, justificassem a estratificação social. O traje dândi transformou-se no uniforme dos jovens pós-revolucionários de vanguarda, traje de oposição dos novos políticos republicanos das Américas.
O dândi foi uma das versões inglesas do herói romântico, na sua posição de revolta, assumido na França pelos incroyables. Seu objetivo era apenas ser ele próprio, sem passado, aristocrata moderno, sempre incógnito e, no entanto, sempre em exibição.
O estilo que o dândi inventou levou a duas direções opostas: ao vestuário convencional masculino e, deste modo, à antimoda como o verdadeiro chique, ou seja, à elegância que nunca chama a atenção, e também ao estilo de oposição. A antimoda é a tentativa de encontrar um estilo sem época, de eliminar por completo o elemento mudança na maneira de vestir. As modas de oposição têm por finalidade expressar a dissidência ou as idéias diferentes de um dado grupo, ou das opiniões hostis à maioria conformista.
Queila Ferraz Monteiro é estudiosa de História da Moda, é consultora de design e gestão industrial para confecção e Professora de História da Indumentária e Tecnologia da Confecção dos cursos de moda da Faculdade Belas Artes, Senac Moda e Universidade Anhembi Morumbi. [email protected]
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